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INF1858

Português

Sem acessórios nem som

               Escrever só para me livrar
               de escrever.
               Escrever sem ver, com riscos
               sentindo falta dos acompanhamentos
               com as mesmas lesmas
               e figuras sem força de expressão.
               Mas tudo desafina:
               o pensamento pesa
               tanto quanto o corpo
               enquanto corto os conectivos
               corto as palavras rentes
               com tesoura de jardim
               cega e bruta
               com facão de mato.
               Mas a marca deste corte
               tem que ficar
               nas palavras que sobraram.
               Qualquer coisa do que desapareceu
               continuou nas margens, nos talos
               no atalho aberto a talhe de foice
               no caminho de rato.

FREITAS FILHO, A. Máquina de escrever: poesia reunida e revista.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

Nesse texto, a reflexão sobre o processo criativo aponta para uma concepção de atividade poética que põe em evidência o(a)

angustiante necessidade de produção, presente em “Escrever só para me livrar/ de escrever”.
imprevisível percurso da composição, presente em “no atalho aberto a talhe de foice/ no caminho de rato”.
agressivo trabalho de supressão, presente em “corto as palavras rentes/ com tesoura dejardim/ cega e bruta”.
inevitável frustração diante do poema, presente em “Mas tudo desafina:/ o pensamento pesa/ tanto quanto o corpo”.
conflituosa relação com a inspiração, presente em “sentindo falta dos acompanhamentos/ e figuras sem força de expressão”.