A escrava
— Admira-me —, disse uma senhora de sentimentos
sinceramente abolicionistas —; faz-me até pasmar como
se possa sentir, e expressar sentimentos escravocratas,
no presente século, no século dezenove! A moral
religiosa e a moral cívica aí se erguem, e falam bem
alto esmagando a hidra que envenena a família no mais
sagrado santuário seu, e desmoraliza, e avilta a nação
inteira! Levantai os olhos ao Gólgota, ou percorrei-os em
torno da sociedade, e dizei-me:
— Para que se deu em sacrifício o Homem Deus,
que ali exalou seu derradeiro alento? Ah! Então não é
verdade que seu sangue era o resgate do homem! É
então uma mentira abominável ter esse sangue comprado
a liberdade!? E depois, olhai a sociedade... Não vedes
o abutre que a corrói constantemente!… Não sentis a
desmoralização que a enerva, o cancro que a destrói?
Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela
é, e será sempre um grande mal. Dela a decadência do
comércio; porque o comércio e a lavoura caminham de
mãos dadas, e o escravo não pode fazer florescer a lavoura;
porque o seu trabalho é forçado.
REIS, M. F. Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, 2018.
Inscrito na estética romântica da literatura brasileira,
o conto descortina aspectos da realidade nacional no
século XIX ao